Arte, tecnologia e cultura no século XX
Autor: Eduardo Ariel
Desde a última década do século XX, muitos analistas da sociedade e da cultura têm enfaticamente repetido que está se vivendo um verdadeiro choque do futuro ocasionado, sobretudo, pelos avanços das ciências físicas e biológicas. Muitos avanços ocorreram na teleinformática, nas telecomunicações e nas próteses tecnológicas do tipo sensório-cognitivas. De maneira mais específica, a biologia segue desbravando o genoma humano, bem como do restante da fauna e da flora do planeta. Muito disso converge para o desenvolvimento da biotecnologia e da bioindústria, onde novos materiais podem reinventar o ser humano. Segundo Santaella (2018) aglutinada sob o rótulo de revolução digital, para alguns, essa nova era constitui um verdadeiro salto antropológico comparável ao da revolução neolítica pelas transformações que está trazendo para todas as esferas da sociedade: economia, trabalho, política, cultura, comunicação, educação, consumo etc. Ela segue dando conta que neste momento histórico-antropológico, chamado de terceiro ciclo evolutivo como sapiens sapiens, parece importante prestar atenção no que estão fazendo os artistas situados na “ponta de lança da cultura”, pois são os primeiros no enfrentamento face a face junto aos horizontes da incerteza. Decerto, são eles que estão criando novas imagens do humano e de seus ambientes, no vórtice das atuais transformações.
Para Arantes (2018) no interior de grandes períodos históricos, a forma de percepção das coletividades humanas se transforma ao mesmo tempo que seu modo de existência. Não é de surpreender que o ensaio “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, escrito por Benjamin (2012) em meados do século XX, ainda sirva de subsídio para as discussões contemporâneas que dizem respeito às produções artísticas em mídias digitais. Nesse famoso ensaio, o filósofo tenta detectar as modificações estéticas trazidas às manifestações artísticas pelo advento da reprodutibilidade técnica. Na sociedade moderna há uma desintegração do valor aurático da manifestação artística. Com a reprodutibilidade técnica, a obra de arte se metamorfoseia, perdendo seu status de unicidade atrelado a uma determinada dimensão espaço temporal (sua “aura” compreendida como tal no “aqui e agora”). Com a perda da aura há não somente uma modificação na forma pela qual o receptor e o produtor se relacionam com a produção artística, como também uma alteração na função desempenhada pela obra de arte no contexto mais geral da sociedade.
No sentido da forma, o seu trajeto da sua fase moderna à contemporânea tem sido negar múltiplas associações com os suportes conceituais oriundos da estética tradicional: moldura na pintura e pedestal na escultura. Assim sendo, para Ferreira Gullar não se trata mais de erguer um espaço metafórico, ilusionista, no qual uma janela (moldura) parece abrir-se recortando um “pedacinho do mundo”, e sim de incorporar a obra no espaço real e de emprestar a esse espaço, pela aparição da obra, atenção especial. Por conseguinte, ela sai da tela para adentrar o espaço real, vivenciado plenamente pelo espectador. Nesse sentido, já na cena moderna viu-se outros materiais serem incorporados, tais como aqueles industriais, outros de uso cotidiano para se chegar aos relacionados com os bits e bytes.
Conforme Arantes (2018) o momento da obra de arte na atualidade, no entanto, já não diz mais respeito somente à era da reprodutibilidade técnica, mas à era digital, a esse momento histórico permeado pela revolução da informática e por sua confluência com os meios de comunicação. Nesse sentido, Krumm (2010) explicita que são muitas informações disponíveis e “telas” presentes disputando atenção no cotidiano das pessoas, afinal se está na terceira revelação informática, tido como ubíqua e pervasiva. Nela são muitas telas para um actante ou fruidor. Assim sendo, são muitos espaços de exposição ganhos no ciberespaço.
Corroborando com o estado da arte formulado até aqui, Pimentel (2014) enaltece que a arte, como expressão individual e coletiva, tanto sofre como se impulsiona, ao mesmo tempo, pelas ações das novas tecnologias se distanciando da cultura do gênio e da mimese. Ao mesmo tempo, o desenvolvimento de uma crítica voltada para as manifestações artísticas que lidam com os dispositivos tecnológicos, já ocorria em fins do século XIX, quando Charles Baudelaire teceu ferozes críticas à prática fotográfica como fonte de experimentação estética. Tal como era a representação para diversos membros do establishment centrados no ideal de representação da natureza.
No mundo contemporâneo, a discussão das novas formas de arte surgidas com o advento da era digital usualmente remetem para algumas dicotomias que relacionam subjetividade e tecnologia, arte e automatismo, conteúdo e expressão. Além delas, Souza (2014) indica como o termo o poder polissémico advindo da etimologia da tecnologia, desde aquela com raiz no grego, techné, para aquela concebida por meio de apropriações entre o homem e instrumento tecnológico (Mc Luhan, 1997). Além delas, de maneira mais recente, existem técnicas que possibilitam um movimento constante de territorialização e desterritorialização dos domínios envolvidos. Nesse sentido, surgem as estéticas informacionais, desenvolvidas por Abraham Moles e Max Bense com base nas teorias da informação e da cibernética, em que a arte já não deveria ser mais definida em termos de beleza ou verdade, mas a partir de informações estéticas mensuráveis matematicamente. Ainda que essas teorias traduzissem com profundidade as mudanças na percepção do mundo impostas pelo desenvolvimento das TICs e do tratamento automático da informação, para McLuhan (1997) elas só exploraram o campo artístico sob o seu aspecto informacional, não levando em conta as interações entre a obra e o espectador.
No cenário internacional um marco decorrente das novas propostas de interativas foi a Biennial Exhibition, em 2002, no Whitney Museum of American Art. Na ocasião ganharam destaque 113 artistas que influenciaram muito da arte eletrônica como se conhece atualmente. Assim, desde o evento muito nomes apareceram na cena artística, tais como: Refik Anadol, Ben Fry, Jeffrey Shaw, Char Davies, Karl Sims, Peter Weibel, Christa Sommerer e Laurent Mignonneau, Ken Rinaldo, Victoria Vesna e o grupo Knowbotic Research. Muitos deles também se destacaram em festivas como ZKM, Iamas e Mecad; em simpósios como Siggraph e Ars Electronica; por último, em listas na rede como Rhizome.
No Brasil, Waldemar Cordeiro e Abraham Palatnik são expoentes inaugurais do campo junto com muitos outros artistas que fizeram parte das experimentações em arte-comunicação dos anos 1980. Nelas foram utilizados fax, slow-scan tv, satélites e videotexto em busca de uma linguagem inicial que fosse um contraponto para o que era feito na TV. Em seguida, outros vieram de segmentos como vídeo, fotografia e artes plásticas. Por último, existem aqueles mais novos que começaram diretamente no meio digital. Já os principais eventos e prêmios foram: Brasil High-Tech, Web-arte no Brasil dentro da XXIV Bienal Internacional de São Paulo, espaço de Cibearte no II Bienal Mercosul, evento Emoção Art.ficial, File e Pêmio Sergio Motta de Arte e Tecnologia e net-arte na XXV Bienal Internacional de São Paulo. Arantes (2018) fez um vasto apanhado de artistas e de performances representantes das artes das novas mídias em terras brasileiras com uma contribuição relevante para o cenário mundial. Muitos deles seguem experimentando mídias digitais, tais como: ciberarte, arte das redes, arte computacional, sky-arte, arte por satélite, arte da telepresença, arte numérica, teleintervenção, imersão, realidade virtual, arte transgênica e arte robótica.
Ainda existe uma confluência com o sentido mais amplo de mídia que pede um olhar mais cuidadoso, donde o suporte, o meio e a mensagem se entrelaçam de forma híbrida (McLuhan, 1997). Tal consideração diz respeito ao pensamento digital que assume uma tônica predominante sobre uma construção de mundo analógico, tal como pode ser vista nos encaminhamentos que o métier teve, conforme segue em suas definições e compreensões etimológicas. Na obra, The Language of New Media, Lev Manovich afirma que a expressão “novas mídias” à distribuição e exibição de informações mediadas pelos computadores tem de forma inaugural relação com: a internet, os websites, a multimídia computacional, os jogos eletrônicos, CD-ROMs, DVDs, realidade virtual e interface gráfica com o usuário (GUI). Já mídia, de acordo com Santaella (2003), designa essa nova fase da cultura contemporânea estreitamente influenciada pela revolução da informática e pelas tecnologias numéricas, donde todos os processos mediados por computador (CMC) também estão inclusos. Tal entendimento advém da expansão que o termo vem ganhando na contemporaneidade devido ao desenvolvimento acelerado da informática e de sua inter-relação com os meios de comunicação.
Em adição, no caso da expressão “arte em mídias digitais” se sugere uma produção artística que não atua somente na interface com a informática, mas também na confluência com os meios de comunicação mediados por computador. Pela tensão experimental-criativa em conjunto com o incremento tecnológico-instrumental muitas denominações foram apresentadas ao longo dos anos: arte-cibernética (1950-1960); arte-informática (1970-1980); arte numérica, arte-eletrônica, arte e tecnologia (após 1980). Atualmente os termos mais recorrentes no contexto da produção artística contemporânea são: ciberarte, arte das novas mídias e artemídia. Ademais, Machado (2003) propõe uma simbiose em curso para os termos arte e mídia, pois ambos vêm se contaminando e se entrelaçando ao propor novas estratégias poéticas na contemporaneidade.
Em geral, o registro da multiplicidade denominações ocorre no prisma iniciático, destacando ora formas de expressão artísticas que se apropriam de recursos tecnológicos midiáticos da indústria do entretenimento ou da eletrônica / da informática. O desenvolvimento estético pode estar imbricado nas interfaces áudio-tátil-moto-visuais propícias para o desenvolvimento de trabalhos artísticos, seja no campo das artes baseadas em rede (on-line e wireless), seja na aplicação de recursos de hardware e software para a geração de propostas estéticas off-line.
Tais pressupostos podem denotar uma crise no artista, no fruidor, no produtor cultural, no marchand ou nos demais componentes do establishmentartístico, gerando um redesenho do ecossistema da indústria cultura. Para Arantes (2018) muito se deve ao rompimento com a dicotomia obra/público, ao aspecto processual e temporal das práticas artísticas, à aproximação da arte com a vida e uma possível ruptura com os espaços expositivos tradicionais como museus e galerias de arte. Outra vertente se dá em um fórum mais íntimo, às vezes, pelo próprio artista ser compreendido como tal pela sociedade, pares ou crítica especializada o sentido de plataforma, obra e estilo podem se hibridizar em simulacro angustiante em que sua figura fica transparente perante todo o restante. Muito disso se relaciona com o ser criativo ter ganho amplitude, migrando para procedimentos criativos coletivos, em que a obra emerge da ação interventora artística cooperativa, da experimentação como interface de campos distintos de saberes-prática- da aproximação com abordagens científicas e no insight dos dados disponíveis nas ferramentas de visualização de Big Data.
Arantes (2018) avança, sem subterfúgios, ao dar conta que novas veredas do pensamento sobre a estética são inauguradas e recicladas pela própria artemídia em um ciclo incessante. McLuhan (1997) entende que só é possível pensar em uma estética digital, na medida em que ela se diferencia dos paradigmas estéticos anteriores, moldando um contraponto como sendo algo realmente novo. Em consonância com o mesmo debate tanto Santaella (2018) como Beiguelman (2021) compreende que a chamada “estética digital” não se limita à rejeição da obra puramente contemplativa, nem à valorização do processo em vez do resultado da criação. Decerto, ela funde arte e ciência, fazendo com que as consequências desse hibridismo esbarrem em questões éticas diariamente debatidas em todo o planeta a partir do uso da clonagem, da robótica, da informática e de outras ramificações das áreas do conhecimento. Tamanha efervescência estética tecnológica não ficou sem diálogo com com Walter Benjamin, Gianni Vattimo, Max Bense, Peter Weibel, Paul Virilio, Edmond Couchot e Philippe Quéau, entre outros. Assim sendo, de modo ulterior fora apresentado o conceito de interestética (estética da interface) como uma das possibilidades para se pensar sobre a estética que se situa na interface com as mídias digitais.
Para Beiguelman (2021) a arte talvez possa ser vista como uma forma de pensar o mundo dentro de um exercício de tensionamento do real, conforme os trabalhos de Eisenstein a Antonioni, de Rejane Cantoni e Lucas Bambozzi a Harum Farocki, passando por Adam Harvey e Trevor Paglen, dentre muitos outros. Os principais temas emergentes estão: nas transformações do olhar, nas estéticas da vigilância, na vida urbana mediada por imagens, nas novas formas de exclusão – como o racismo algorítmico – na cultura da memória do tempo do digital, na pandemia das imagens do coronavírus no Brasil e no mundo.
Por fim, um pressuposto comum em destaque emerge: as imagens tornaram-se as principais interfaces de mediação do cotidiano. Assim, como exemplos dessa hipercomplexidade cotidiana muito da interação mediada ocorre por recursos relacionados com a comunicação pervasiva, as relações afetivas líquidas, a infraestrutura ubíqua, corpos via sistemas de escaneamento, avatares multigêneros e aplicativos hápticos diversos. Tal pressuposto se dá em um constructo compreendido pelos sentidos semiológicos, sociais e políticos. Desse trinômio orgânico-dinâmico o meio digital se expande como espaço de fruição, de integração artística, de cy
ber-instalações e de manifestação pública performática.
Referências
ARANTES, P. Arte e mídia - 2ª ed. Editora Senac São Paulo. Edição do Kindle: 2018.
BEIGUELMAN, G. Políticas da imagem. Ubu Editora. Edição do Kindle, 2021.
BENJAMIN, W. Sobre arte, técnica, linguagem e política. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2012.
KRUMM, J. Ubiquitous computing fundamentals. New York: CRC Press, 2010.
MACHADO, A. (org.) Made in Brazil: três décadas do vídeo brasileiro. São Paulo: Itaú Cultural, 2003.
MCLUHAN, M. Understanding Media: the extensions of man. Cambridge / Londres: MIT Press, 1997.
PIMENTEL, L. G. Ecossistemas estéticos e tecnologias contemporâneas em gravura. 23o Encontro da ANPAP – “Ecossistemas Artísticos”. MG: Belo Horizonte, 2014.
SANTAELLA, L. Culturas e artes do pós-humano. Da cultura das mídias à Cibercultura. São Paulo: Ed. Paulus. 2003. Coleção Comunicação.
SANTAELLA, L. In: Arte e mídia - 2ª Ed. Apresentação: decifrando os enigmas da estética digital. Arantes, Priscila. Arte e mídia. Editora Senac São Paulo. Edição do Kindle (Posição 57), 2018.
SOUZA, L. S. Montagem Ucrônica: Uma abordagem para o agenciamento entre Arte e Tecnologia nas artes audiovisuais. Dissertação (Mestrado em Artes) Programa de Pós-Graduação em Artes da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2014.
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