Reflexão sobre o panorama do século XXI e suas manifestações emergentes (videoarte, arte telemática, internet arte, redes audiovisuais digitais, big data and data visualization)
Autor: Eduardo Ariel
O registro dos símbolos linguísticos para Lévy (2010b) foi um marco na evolução humana, assim como o invento da internet. Muitos avanços tecnológicos decorrentes dela seguem alterando os sistemas sociais de forma irreversível – conforme Bush (1962) e Negroponte (1995). A transição do mundo analógico para digital parece ocorrer, em primeira instância, como uma imagem na mente das pessoas. Como efeito ulterior existe uma migração de átomos para bits, de acordo com Negroponte (1995) e Jenkins (2009) na medida em que a sociedade caminha para o ciberespaço. A chamada cultura digital para Lévy (2010a) é algo maior do que a tecnologia, sendo estruturada pela premissa da liberdade e contendo os seguintes princípios: construção, criação, invenção, experimentação, cooperação, comunicação, aprendizagem e ajuda. Essa reflexão, de acordo com Antunes e Maia (2018) poderia parecer plausível, porém não resiste a uma análise crítica sobre o trânsito de dados na internet. Hoje parece existir um controle sobre o fluxo de informações sem precedentes. Para compreendê-lo, é necessário pensar como se processam atualmente os Big Data. Marques (2017) acredita na utilização deles para exploração dos interatorescomo forma de controle social (mais sutil e abrangente), tal como aponta Han (2015).
Para escapar dessa clausura Beiguelman (2021) elabora que a arte talvez possa ser vista como uma forma de pensar o mundo dentro de um exercício de tensionamento do real, conforme os trabalhos de Eisenstein e Antonioni, de Rejane Cantoni, Lucas Bambozzi e Harum Farocki, passando por Adam Harvey e Trevor Paglen, entre muitos outros. Os principais temas emergentes contemplados pelas manifestações artísticas são: as transformações do olhar, as estéticas da vigilância, a vida urbana mediada por imagens, as novas formas de exclusão – como o racismo algorítmico –, a cultura da memória do tempo do digital, a pandemia das imagens do coronavírus no Brasil e no mundo. Decerto, após todo esse enunciado, um pressuposto comum em destaque emerge: as imagens tornaram-se as principais interfaces de mediação do cotidiano. Tal postulação se dá pelos sentidos semiológico, social e político. Com isso, elas ocupam a comunicação, as relações afetivas, a infraestrutura, os avatares e os corpos via sistemas de escaneamento e aplicativos diversos.
Segundo Arantes (2018), à medida que o computador foi-se tornando mais acessível junto com a popularização da internet as possibilidades de experimentação artística com os recursos informáticos começaram a se ampliar. Questionar as distâncias espaço temporal, criar ambientes que ampliam o campo perceptivo do interator, criar espaços específicos de cooperação onde os usuários experimentam, compartilham, transformam e intensificam maneiras de sentir e ver o mundo, trabalhar com questões da área da biologia e vida artificial tem sido, desde então, a tônica das experimentações em mídias digitais. Para Santaella (2019) ciberinstalações, cibercenários, ambientes imersivos, sistemas multiusuários, telepresença, teleperformances, instalações e performances digitais, net-arte, robótica, vida artificial, arte transgênica, propostas estéticas que utilizam comunicação sem fio, trabalhos on-line e off-line são algumas das formas pelas quais os artistas contemporâneos vêm trabalhando com as mídias digitais. De maneira complementar, Machado (1988) reforça que o verdadeiro criador subverte continuamente toda produtividade programada da máquina, decerto em prol da concepção estilística visada.
Com a expansão das práticas artísticas em mídias digitais, após os anos 90, Vattimo (1996) assinala uma explosão da estética para fora de seus limites precisos definidos pela tradição. Fala do “estranhamente pervertido”, expressão de um sintoma geral da contemporaneidade, quando tudo é aparência e simulacro. Já Virilio (1993) discute uma estética do desaparecimento, ao se referir às tecnologias do tempo real e à revolução das telecomunicações que afetam nossas percepções de forma substantiva. Menos radical é Benjamin (1993), que, para além de uma visão sociologizante da prática artística, defende, de forma determinante e ainda atual, a ideia de que as novas condições da produção e da fruição artística surgidas na sociedade de comunicação de massa modificam de maneira substancial a essência da obra de arte.
A partir do século XX, uma série de artistas começaram a trabalhar de forma mais sistemática na interface entre arte, ciência e tecnologia, com o objetivo de criar novas propostas estéticas que expressassem o espírito da sociedade industrial em desenvolvimento. Assim, desde o Dada e o Duchamp, seguidos pelo happening, instalações, land art, space art, arte de sítio específico e ciberarte, a imagem foi de forma crescente tornando-se apenas uma das regionalidades da arte em meio ao pluralismo proliferante de tendências. Santaella (2019) e Canclini (1989) enunciam com tantas manifestações o surgimento da “arte depois do fim da arte”, afirmando até mesmo que “na arte hoje tudo é permitido” – reforçando o rompimento com quaisquer limites e abraçando o sentido híbrido experimental. Da época atual tida como do pluralismo radical, sendo ele próprio a maior conquista encetada pelos anos 1960-1970. Ao reivindicar que a arte contemporânea é por demais pluralista em intenção e realização para permitir ser apreendida em uma única dimensão. Já Danto (2007) afirma que artistas e galeristas, bem como as práticas de História da Arte e a disciplina Estética devem tornar-se diferentes do que foram até agora. Assim sendo, a prática artística contemporânea aparece como “um campo fértil de experimentações sociais”, sem valorizar tanto movimentos ou comportamentos homogêneos.
Uma outra abordagem da imagem na modernidade pode ser revisitada quando Machado (1988) debate a ontologia da imagem eletrônica e videográfica. Apesar de manter algumas semelhanças com a imagem cinematográfica e fotográfica se renuncia à verossimilhança preconizada pela mimética. Por ser constituída de uma série de linhas de retículas, vetores e pixels, a imagem videográfica “retalha” a figura, prejudicando a fidelidade ao mundo retratado – como uma crítica do meio televisivo. Outra reconfiguração relevante se dá para Couchot (2003) no que tange a imagem interativa, tal como ele a nomeia. Ela é passível de certa plasticidade e comportamento não somente em função dos diálogos que se estabelecem entre a imagem e o interator, como também a partir de uma interatividade endógena. Em suma, cada objeto reage com os outros objetos assim como reage com o usuário.
Uma aplicação das experimentações interacionais acerca das imagens algorítmicas e computacionais interativas se dá quando elas ocupam o espaço público e adquirem características orgânicas, encontradas especialmente na fauna e na flora planetária. Um caso interessante se manifesta nas obras do artista digital Refik Anadol. Ele propõe uma “arquitetura pós-digital” e convida o público a imaginar realidades alternativas. Em geral, seus trabalhos exploram o espaço entre entidades digitais e físicas, criando uma relação híbrida entre ambientes construídos, tecnologia, mídia e artes mediadas com máquinas inteligentes. Suas esculturas são uma mixagem de pinturas de dados tridimensionais. Delas planos idílicos se transformam em quimeras digitais que repaginam o espaço urbano e público.
Manovich (2001) desenvolveu o argumento de que, a beleza significativa da visualização de dados consubstancia uma estética do antissublime. Isso faz da visualização científica o exato oposto da definição de sublime efetuada por Kant (1964), pois o belo é a forma da finalidade em um objeto, na medida em que é percebida nele independentemente da representação de um fim. Assim sendo, no caso do belo existe um padrão relacionado com finalidade em um objeto, existe um apreso intelectual incutido pela sua própria organização, ainda que não se trate de uma peça utilitária. No sublime, por contraste, não se reconhece o propósito de um princípio de organização, porque o sublime é desmesurado, desafiando nossos poderes de imaginação para apresentar uma forma sensível ao entendimento. A compreensão encontra algo que ela não pode organizar ou conter. É sublime aquilo que deixa todo o resto pequeno. Em suma, o sublime é perturbador, o belo é tranquilizante, pois é como se o belo estivesse pré-adaptado ao nosso julgamento, constituindo-se em objeto de satisfação, sentimento que o sublime é desmedido demais para despertar.
A ideia de Manovich (2001) de aliar a visualização de dados ao antissublime faz bastante sentido, especialmente na escala dada para a big data. Quando a incomensurabilidade dos dados, que transcende de longe a escala dos sentidos e da razão humanos, passa por uma representação visual que pode, inclusive, ser manipulada graças aos recursos computacionais presentes na interface gráfica, Card, Mackinlay e Schneiderman (1999) sugerem o insight como resultante. Tudo aqui perpassa pela integração entre o pensamento abstrato e o pensamento sensível que a visualização científica leva ao clímax conforme Martin-Martin-Barbero (2003). Da interseção das imagens resultantes da visualização de dados junto com o caráter dinâmico, emana um excedente não-linear de beleza e fascínio, algo que sobra, um excesso que extravasa os planos, propósitos e limites estritos da ciência. Em síntese, as imagens atuais de visualização científica são exemplares privilegiados da expansão da estética para muito além do campo exclusivo da arte. Com isso, essas imagens acabam indiretamente ensejando uma reflexão sobre os destinos da imagem na arte contemporânea, conforme Arantes (2018) explicita no conceito da interestética. Como exemplos de obras que transcendem o limite entre ciência e arte em uma interrelação, pode-se citar: os trabalhos com artegenômica de Bem Fry e de sky-art de José Wagner Garcia.
A dimensão estética, portanto, é vista dialeticamente por Benjamin (2012) em dois eixos, tanto no sentido da manipulação da consciência quanto como instrumento de crítica social. No entanto, os formatos desses contributos originais terão de confrontar-se respectivamente com a política, com o ceticismo e com a mass media. Para Benjamin (2012) a inversa também é verdadeira, pois a estética também se encontra presente e ativa na biopolítica, na “mass-mediologia”, no anarquismo epistemológico e na teoria da comunicação. Já Adorno (1982), em sua monumental “teoria estética”, desenvolve o conceito de mimese crítica, como uma forma de recuperar a produção artística em uma sociedade em que tudo se transforma em mercadoria. Para não entrar no circuito das mercadorias, a arte deve ser crítica, deve ser protesto contra a sociedade e estar além dos espaços tradicionais (museus, galerias e vernissages).
Marcuse (1990), em seu ensaio “A arte na sociedade unidimensional”, destaca o poder liberador da arte. A arte funcionaria como uma espécie de desabafo contra o establishment repressivo. Para ele o grande artista pode capturar toda a amargura e horror, todo o desespero e tristeza da realidade – tudo isto se converte em beleza. Então a arte, com toda a sua força afirmativa, operaria como parte do poder liberador do negativo e ajudaria a libertar o inconsciente e o consciente mutilados, que solidificam o establishment repressivo. Enquanto Gilles Deleuze evidencia outro caminho para resistir às novas formas de manipulação da sociedade capitalista contemporânea – que, com sua superestrutura midiática, tem conseguido estabelecer novos meios de controle e vigilância, por meio de estratégias fluidas e descentralizadoras – é operar no sentido da contrainformação. Em outros termos, informar é fazer circular uma palavra de ordem. De mesmo modo, a obra de arte em si mesma, é aquela que resiste. Ela tem algo a ver com comunicação e com ato de resistência, seja na compreensão das diversas linguagens e estéticas que despontam da interpenetração com as mídias digitais, como metacomunicação que resiste aos processos entrópicos da mass media que auxiliam na manutenção dos paradigmas, do status quo e das estruturas de opressão ainda vigentes na indústria cultura.
Por fim, o mundo se transforma em um local de “tempo presente”, conforme Davenport e Beck (2001). Esse fenômeno é chamado de Nowism – a filosofia do “agora”. Nele, o passado e o futuro perdem importância para o “agora”. Disso tudo, os sentimentos de urgência e premência ganham protagonismo. Tudo se dando ao mesmo tempo que o trinômio artista-produtor-fruidor pede por algum tempo de reflexão sobre uma sociedade que amplie o sentido de velocidade e do tempo real, onde o agora prevalece sobre os demais tempos de experiências. Em sequência, para Martinuzzo (2014), na atualidade o aumento de informações não parece desacelerar e segue em crescimento. Desse modo, questões da interrelação da arte com novos palcos, instalações, obras e espaços assumem um “ar” de participação democrática e libertária, promovendo vida autêntica para corpos / gêneros que agonizam na aridez efêmera do não-virtual-ordinário.
Referências
ARANTES, P. Arte e mídia. Editora Senac São Paulo. Edição do Kindle, 2018.
ADORNO, T.W. Teoria estética, 2ª ed., São Paulo, Martins Fontes, 1982.
ANTUNES, D. C.; MAIA, A. F. Big Data, exploração ubíqua e propaganda dirigida: novas facetas da indústria cultural. Psicologia USP. Volume 29, número 2, 2018, 189-199 DOI: <http://dx.doi.org/10.1590/0103-656420170156>
DAVENPORT, T. H.; BECK, J. C. Economia da Atenção. Rio de Janeiro: Editora Elsevier: 2001. 304 pg.
MARTIN-BARBERO, J. Dos meios às mediações. Comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2003.
BENJAMIN, W. Sobre arte, técnica, linguagem e política. Portugal: Relógio D’Água, 2012.
BEIGUELMAN, G. Políticas da imagem. Ubu Editora. Edição do Kindle: 2021.
CARD, S. K.; Mackinlay, J.; Schneiderman, B. Readings in Information Visualization: Using Vision to Think, Morgan Kaufmann, 1999.
CANCLINI, N. G. Culturas híbridas. São Paulo: Ed. USP, 1989.
JENKINS, H. Cultura da Convergência (Nova Edição - Ampliada e atualizada). Editora Aleph, 2009. Edição do Kindle.
LÉVY, P. Cibercultura - 3ª edição. 2010. São Paulo: Editora 34. 272 pg.
LÉVY, P. As tecnologias da inteligência: o futuro do pensamento na era da informática - 2ª edição. 2010. São Paulo: Editora 34. 208 pg.
MACHADO. A arte do vídeo Machado, 1988.
MARTINUZZO, J. A. Os públicos justificam os meios. Summus Editorial. Edição do Kindle (2014).
NEGROPONTE, N. A vida digital -1ª Edição. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 1995. 216 p.
SANTAELLA, L. Culturas e artes do pós-humano. Da cultura das mídias à cibercultura. São Paulo: Ed. Paulus, 2019.
VATTIMO, G. O fim da modernidade Niilismo e hermenêutica na cultura pós-moderna. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
VIRILIO, P. “The third interval: a critical transition”, In: Conley, V. A. Rethinking technologies, Minneapolis, University of Minnesota Press, 1993.
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