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Modernidade latino-americana

Atualizado: 15 de mar. de 2023

A configuração do campo da Cultura e da Comunicação no século XX.

Autor: Eduardo Ariel.



A modernidade latino-americana foi tida como um modernismo exuberante, mas com uma modernização deficiente. Posto que muita colonização se deu por nações europeias mais atrasadas, submetidos à Contra-Reforma e a outros movimentos antimodernos, apenas com a independência foi possível iniciar a atualização dos países da região. Desde então, houve ondas de modernização. Decerto, não formaram mercados autônomos para cada campo artístico, nem conseguiram uma profissionalização ampla dos artistas e escritores, nem o desenvolvimento econômico capaz de sustentar os esforços de renovação experimental e democratização cultural.


Conforme Canclini (2019) algumas características da modernização foram comuns nos países latino-americanos, tais como: expansão restrita do mercado, democratização para minorias e renovação das ideias, porém com baixa eficácia nos processos sociais. Os desajustes entre modernismo e modernização sempre foram úteis às classes dominantes para preservar a hegemonia, e às vezes para não ter que se preocupar em justificá-la. Na cultura escrita, conseguiram isso limitando a escolarização e o consumo de livros e revistas. Na cultura visual, mediante três operações que possibilitaram às elites restabelecer repetidas vezes, frente a cada transformação modernizadora sua concepção aristocrática: espiritualizar a produção cultural sob o aspecto de “criação” artística, com consequente divisão entre arte e artesanato; congelar a circulação dos bens simbólicos em coleções, concentrando-os em museus, palácios e outros centros exclusivos; propor como única forma legítima de consumo desses bens essa modalidade também espiritualizada, hierática, de recepção que consiste em contemplá-los.


Muito do ocorrido na conversão da realidade em imagens se deu em sociedades heterogêneas com tradições culturais que convivem e que se contradizem o tempo todo. Muitas dessas racionalidades diferentes detinham lideranças próprias com questões bem díspares. Tudo ocorrendo em um sistema democrático frágil com uma perspectiva socioeconômica desigual e hesitante. Ademais, para completar o quadro os movimentos inovadores se assemelhavam com “transplantes” ou “enxertos”, desvinculados de propósito e de cronologia. Por exemplo, conforme Yurkievich (1984) apud Canclini (2019) o cubismo e o futurismo correspondem ao entusiasmo admirado da primeira vanguarda frente às transformações físicas e mentais provocadas pelo auge inaugural da mecanização; o surrealismo é uma rebelião contra as alienações da era tecnológica; o movimento concreto surge junto com a arquitetura funcional e o desenho industrial, com intenções de criar um novo hábitat humano; o ascetismo e a produção em série da era funcional corresponde a uma aguda crise de valores, ao vazio existencial provocado pela Segunda Guerra Mundial. Assim sendo, todas essas tendências foram praticadas exatamente na sequência que na Europa apresentou, quase sem ter entrado no “reino mecânico” dos futuristas, sem ter chegado a nenhum apogeu industrial, tão pouco ter adentrado plenamente na sociedade de consumo, não se foi invadido pela produção em série ou tolhido pelo excesso de funcionalismo etc. Ainda que o eco do tempo conote uma modernidade latino-americana como sombra, tal qual Anderson (...) postulou.


No Brasil não se produzia uma distinção clara entre a cultura artística e o mercado massivo, somente desinteligência. Os artistas sequer tinham como viver de sua arte, muitos trabalhavam como docentes, funcionários públicos ou jornalistas. No caso da literatura, acontia uma tiragem muito diminuta das obras. Assim sendo, muitos dos escritores foram absorvidos pela burocracia estatal e o mercado de informação de massa. Outras condições nacionais se manifestaram tempos depois, quando parte da Declaração dos Direitos Humanos foi transcrita para Constituição brasileira de 1824, enquanto na economia latifundiária o trabalho escrevo ainda perdurava.


Trabalhos sobre outros países latino-americanos apresentam pontos em comum, mas um dos mais célebres reforça que a colonização produziu três setores sociais comuns aos países do continente: o latifundiário, o escravo e o “homem livre”. Entre os dois primeiros, a relação era clara. No entanto, a multidão dos terceiros, nem eram tidos como proprietários ou proletariado, dependiam materialmente do favor de um poderoso. Assim, o mercado consumidor, a indústria cultura, os governos e o comércio foram se formando. Com a modernização e a democratização abarcando uma pequena minoria, não parece possível formar campos culturais robustos e autônomos, somente aqueles simbólicos. Se ser culto no sentido moderno é (inicialmente) ser letrado, no continente latino-americano parecia uma tarefa quase impossível em 1920 para grande parte da população.


Em um período que se iniciou na Semana de Arte Moderna em 1922, para Amaral (1985) o moderno se conjuga com o interesse por conhecer e definir o brasileiro. Os modernistas beberam em fontes duplas e antagônicas: de um lado, a informação internacional, sobretudo francesa; de outro, “um nativismo que se evidenciaria na inspiração e busca das raízes (dentre elas do folclore brasileiro). Como exemplos se teve o cubismo dando o vocabulário na pintura das Meninas de Guarantiguetá (Di Cavalcanti) e Tasrilla imprimindo uma atmosférica cromática tão própria do Brasil nas técnicas que aprendeu com Lhote e Léger. Em vários casos, o modernismo deu impulso e o repertório de símbolos para construção da identidade nacional. Para Ortiz (...) o modernismo é uma ideia fora de lugar e se expressa pelo projeto, conforme Ribeiro e Belchior (2014) endereçam muito da obra de Lucio Costa, de Aloisio Magalhães e Lina Bo Bardi.


Retornando para os países vizinhos, o Chile mantinha o ensino superior como uma casta somente acessada pelas elites. Nos anos 30 não chegavam em 10% os matriculados nas universidades. Na Argentina o cenário não era muito diferente, especialmente pela forma como a história étnica e as tradições nacionais foram arrasadas. Traço este comum não só aos dois países mencionados aqui, mas em todos os outros que sobrevieram aos atentos vis da burguesia e dos períodos ditatoriais. Em Bueno Aires, muito ocorreu em conjunto com os processos de emigração e de industrialização que fomentaram o início da revista Martín Fierro. Segundo Queiroz (2019) ela resultou de uma iniciativa coletiva, criando uma rede de intelectuais promotora de espaços de criação, valorização e exibição de arte (literatura, cinema, arquitetura, teatro, música e artes plásticas). No Peru, a ruptura com o academicismo é feita em 1929 por artistas jovens preocupados tanto com a liberdade ao representar tipos humanos que correspondessem ao “homem andino”. Assim, foram denominados de “indigenistas”, mesmo que fossem além da identificação com o folclore. O intuito deles era instaurar uma nova arte, representar o nacional situando-o no desenvolvimento estético moderno.


Já no México, após a revolução em seu país, vários movimentos culturais realizavam simultaneamente um trabalho modernizador de desenvolvimento autônomo. O embate com a Academia de San Carlos foi frequente e os pontos de discordância estavam centrados no desenvolvimento desigual e dependente. Com iso, à formação da sociedade nacional parece que usualmente estava no cerne do debate. No entanto, no pano de fundo questões relativas com a difusão educativa e cultural dos saberes ocidentais para os mexicanos das classes populares e o movimento de incorporação da arte e do artesanato mexicanos como patrimônios nacionais pediam espaço na agenda pública. Como resultante da reorganização híbrida da linguagem plástica, conseguiu-se apoio para tais transformações entre os artistas, o Estado e as classes populares. Em seguida, viu-se uma ocupação dos murais de edifícios públicos, dos calendários e das revistas de grande circulação.


Desde os anos 30 começa a organizar-se nos países latino-americanos um sistema mais autônomo de produção cultural. As camadas médias surgidas no México a partir da revolução, especialmente aquelas com acesso à expressão política com o radicalismo argentino, tanto como outros semelhantes no Brasil e no Chile constituíram um mercado com dinâmica própria. Miceli (1979) versa sobre a substituição das importações no mercado editorial. Em todos esses países, migrantes com experiência no setor da arte e da cultura, junto com produtores nacionais auxiliaram na geração de uma indústria cultural com redes comerciais nos centros urbanos. Em paralelo com tal cenário auspicio a alfabetização crescente produzui escritores e empresários, enquanto os partidos políticos estimularam uma produção nacional relevante.


Em 1942, um fato importante se deu no Brasil com o início do IBOPE. Já em 1949, no pós-guerra, foi criada a ABAP. Em 1950, aconteceram o Salão Nacional da Propaganda, no Masp, e a primeira transmissão nacional pela TV Tupi (SP). Em 1960, Assis Chateaubriand criava o jornal Correio Braziliense e a TV Brasília. Em 1967, o sentido da liberdade se apequenou com a Lei nº 5.250. Um “tiro na democracia se escutou” com o AI-5, em 13 de dezembro de 1968. Além do Brasil, diferentes países do continente latino-americano contaram com ditaduras conduzidas em sua maioria por militares, tais como: Paraguai (19541989),Uruguai (1973 – 1985), Argentina (1966 – 1973; 1976 – 1983), Chile (19731990), Peru (1968 – 1975), Bolívia (1964 – 1982), entre outros. Muito da implantação delas estava diretamente associada com o cenário da Guerra Fria.


Entre os anos 50 e 70 novas tecnologias comunicacionais foram introduzidas, tal como a televisão. Muitas contribuíram para massificação e internacionalização das relações culturais. Em conjunto, apoiaram à venda de produtos tidos como “modernos”, fabricados na América Latina: carros, aparelhos eletrodomésticos etc. A ampliação dos mercados de bens de culturais, talvez devido ao aumento da concentração urbana, decorrente do início de um desenvolvimento econômico mais sólido puxado pela crescente industrialização, fez com que as taxas de matrícula escolar subissem em todos os níveis. Sendo assim, por meio dessa articulação muitas relações migraram de um modernismo cultural para social. Nos anos 80 e 90 o apoio de empresas transnacionais, usualmente norte-americanas, aos museus, revistas, artistas, críticos latino-americanos foi um movimento experimental de “despolitização” para substituir o realismo social, junto com uma produção importada, trazendo uma lógica de dominação dentro de uma corrente estética transfigurada em cultura pop para os cinemas e TVs.


No início dos anos 70, o Estado funda Instituto Nacional de Belas-Artes (INBA) dedicado à cultura erudita e, quase ao mesmo tempo, o Museu Nacional de Artes e Indústrias Populares e o Instituto Nacional Indigenista. Em outros países a política estatal colaborou do mesmo modo para segmentação dos universos simbólicos, reforçando tal estratégia com investimentos diferentes para o material produzido para as elites e as massas. Já no século XX tal cisão se expandiu junto com o decréscimo dos números da educação brasileira. O culto passou a ser uma área própria das facções da burguesia, ao passo que quase toda totalidade das classes populares, ia sendo submetida à programação massiva da indústria cultural. Desse modo, o cosmopolitismo se democratiza para atender uma demanda expressa de mais consumidores, vinda da “cultura industrializada”. Como consequência o patrimônio tradicional fica a cargo do Estado e a cultura moderna é cada vez mais tarefa de empresas ou órgãos privados. Com isso, o sentido de preservação da história e da cultura nacional fica dentro das políticas públicas e das ações das empresas governamentais. O fomento realizado pela iniciativa privada visa prioritariamente renovar imagem, perante a sociedade civil como se ela não estivesse interessada no lucro e na expansão econômica. Atualmente, iniciativas de crowdfunding surgiram como alternativa para os modelos citados.


Na década de 90, o artista como mídia e plataforma retomam questões sobre o campo de atuação e o espaço de exposição, seja da obra, da performance, das crenças e da atitude dele próprio – rompendo com o aparato unicista local dos museus, das galerias ou das áreas de exposição /mostra. Com advindo da internet e de novas tecnologias de produção, tanto como de disseminação em rede novos espaços expositivos aproximaram o fazer do expor.

Segundo Navarro (2015) em um artigo intitulado “desafios e responsabilidades dos estudos da comunicação na América Latina”, ainda existem tradições críticas e compromissos com projetos sociais emancipatórios que felizmente estão em vigor em muitos lugares, mas as tendências prevalecentes são preocupantes, pois seguem em direções opostas. A corrupção generalizada, a crise estrutural, a negação de um futuro digno para grande parte dos jovens, a violência extrema como realidade cotidiana, o cultivo estratégico de conflitos, uma economia predatória e uma educação caracterizada pelo “imediatismo superficial” são indicativos dessa desfragmentação nada romântica do futuro. De maneira complementar, o uso vil de manifestações mais eloquentes e difundidas pela midiatização em seu pior sentido, acentuam anos de déficit em uma pseudomodernidade importada pelas oligarquias. Tal fragmentação e empobrecimento dos recursos comunicacionais “livres” relegam para fora dos editoriais e das galerias questões diferentes da representação da identidade nacional ou regional.


Os fenômenos culturais citados acima, estão sujeitos à interferência de diversos fatores históricos, sociais e espaciais. Pela proximidade estabelecida pelos meios de comunicação de massa, as culturas se misturam se interpenetram e novas surgem de tantas intermediações. Da mesma forma, as identidades se misturam e outras se fundem a partir desses encontros, modificado também sua relação com a criação, a produção e o consumo dos objetos culturais. Diante de um cenário tão desafiador para comunicação, entender o comportamento migratório dos actantes e agendas opressores multifacetadas viram pautas principais na atualidade. Não existe mais fronteira entre o digital e o ordinário (Lévy, 2010), entre on-line e off-line. Assim sendo, Longo (2018) defende que toda ação deve ser um hub de conteúdo, já Martinuzzo (2020) preconiza o desenvolvimento de mídias tailor made e, por sua vez, o sentido da formação cidadã plena poderia ampliar o espaço público de manifestação e crítica.


De mesmo modo, como quase todos os relacionamentos humanos e sociais carregam uma “penetrabilidade” pervasiva que faz do corpus e do aparato midiático processos interacionais crescentes de referência, mesmo nas comunicações interpessoais – quiçá nas instâncias mais amplas, mediadas por editorias ou inteligências híbridas (humano-máquinas). Deles o mass media sugestiona temas modeladores da realidade para leitores, espectadores e actantes. Em geral, muitas são designadas como “net-ativismo”, tomando sua pluralidade e suas especificidades tecnológicas, sociais, culturais como cerne. Segundo Di Felice, Massimo (2017) as redes de ação em que atores passam a se cruzar na narrativa, desenvolveram tal nível de sofisticação relacional que resulta, consequentemente, em uma situação que parece improvável pensar em um único ator como o promotor principal das ações sucessivas, ou em uma origem específica da ação. Para Negroponte (1995) o conceito dos “sistemas abertos” é vital, pois exercita a porção empreendedora de nossa economia e desafia tanto os sistemas proprietários quanto os vastos monopólios.


Por fim, em um período de uma ampla midiatização, dando conta tudo que fora apresentado, Santaella (2010) indica que a arte talvez possa ser vista como uma forma de pensar o mundo, decerto um exercício de tensionamento do real, conforme os trabalhos de Eisenstein a Antonioni, de Rejane Cantoni e Lucas Bambozzi a Harum Farocki, passando por Adam Harvey e Trevor Paglen. Ademais, o intermeio propiciado pelo campo artístico quando dialoga com o sentido de mass media, usualmente converge alienação em momentos de reflexão e esclarecimento quanto ao sentido real das coisas. Desse modo, modo alguns temas emergentes nos debates contemporâneos para ganhar espaço na pauta: as transformações do olhar, as estéticas da vigilância, a vida urbana mediada por imagens, as novas formas de exclusão – como o racismo algorítmico –, a cultura da memória do tempo do digital e a pandemia das imagens do coronavírus no Brasil e no mundo.


Referências

AMARAL, A. A. “Brasil: Del Modernismo a la Abstracción, 1910-1950”, In: Canclini (2019).

BELCHIOR, C.; RIBEIRO, R. A. C. Design & Arte. Entre os limites e as interseções. Contagem, MG: Ed. Autor, 2014.

BEIGUELMAN, G. Políticas da imagem. Ubu Editora. Edição do Kindle: 2021.

LAUER, M. Introducción a la Pintura Peruana del Siglo XX. Lima: Mosca Azul, 1976.

LÉVY, P. Cibercultura. São Paulo: Editora 34, 2010.

LONGO, W. Marketing e Comunicação na Era Pós-Digital (pp. 14-15). Alta Books. Edição do Kindle.

MARTINUZZO, J. A. Os públicos justificam os meios. Summus Editorial. Edição do Kindle, 2020.

MICELI, S. Intelectuais e classe dirigente no Brasil (1920-1945). São Paulo - Rio de Janeiro: Diefel, 1979.

NAVARRO, R. F. Desafíos y responsabilidades de los estudios de la comunicación en América Latina In: Seminário Desafios e Perspectivas Epistemológicas e Metodológicas do Campo Comunicacional (1.: 2015.: Belo Horizonte, MG) Seminário Desafios e Perspectivas Epistemológicas e Metodológicas do Campo Comunicacional: estudos comparativos internacionais / Organizadores Maria Ângela Mattos, Max Emiliano Oliveira. Belo Horizonte: PUC Minas, 2015.

ORTIZ, R. A moderna tradição brasileira. São Paulo: Brasiliense, 2001.

QUEIROZ, H. N. A revista Martín Fierro e a promoção das artes de vanguarda na Argentina. PÓS: Revista do Programa de Pós-graduação em Artes da EBA/UFMG. v.9, n.18: nov.2019. Disponível em <https://eba.ufmg.br/revistapos>

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