Compreenda os conceitos essenciais desse fenômeno
Autor: Eduardo Ariel
Contexto
O que torna as grandes empresas americanas de tecnologia poderosas e a governança de suas plataformas complexa?
Nos últimos anos, as empresas de tecnologia transformaram produtos em serviços de dados onde os clientes pagam principalmente com suas informações pessoais e atenção. Os mercados, os setores públicos, as infraestruturas e os serviços públicos são atraídos para um ecossistema baseado em dados que é totalmente mercantilizado e cujo impacto cresce em linha com novos campos emergentes como a inteligência artificial e as tecnologias robóticas. As complexidades das plataformas estão cada vez mais em desacordo com os estreitos conceitos jurídicos e econômicos em que se baseia a sua governança.
Visando situar os Estudos de Plataforma, apresentamos como sua visada é fortemente influenciada pelos Estudos de Ciência e Tecnologia – ou STS, na sigla em inglês – que se dedicam às análises dos regimes de poder, das práticas e das materialidades que constituem a produção científica e os artefatos tecnológicos. Em consonância com a origem transdisciplinar dos STS, notam-se diálogos crescentes com variados campos do conhecimento, o que faz dos Estudos de Plataforma uma perspectiva analítica flexível e potente.
Contextualização: Web 2.0 e Cultura da Participação
Com a chamada Web 2.0, inaugurou-se a partir de 2005 uma nova "lua de mel" entre os novos serviços online e as pesquisas em internet e cibercultura. Durante vários anos, termos como "cultura da participação", "sabedoria das multidões" e "inteligência coletiva" foram amplamente usados para se compreender um conjunto de práticas e inovações que prometiam "democratizar", "horizontalizar" ou "descentralizar" as relações interpessoais, a política, a economia. Autores como Henry Jenkins, Clay Shirky e Pierre Lévy são alguns dos pilares das discussões que subsidiaram projetos e análises sobre a ótica da colaboração entre pares (D’ANDRÉA, 2015).
Dez anos depois, o cenário já era muito diferente. Ao longo dos anos 2010, as chamadas Big Five – Alphabet-Google, Amazon, Apple, Facebook e Microsoft – se consolidaram como serviços infraestruturais e hoje centralizam cada vez mais atividades cotidianas e estratégicas. Influências em processos eleitorais, uso irrestrito de dados pessoais para fins comerciais e uso de algoritmos e bases de dados para perpetuar preconceitos e desigualdades são algumas das questões que cada vez mais preocupam governos, empresas e sociedade civil.
A revelação em 2018 dos abusivos usos de dados oriundos do Facebook pela empresa Cambridge Analytica pode ser tomada como um marco em meio a uma sucessão de escândalos e incertezas protagonizados pelas plataformas online.
Essas organizações e seus produtos digitais (essencialmente como Sas – Software as a Service) têm dimensões tecnopolíticas (mídias sociais - Twitter, Pinterest, YouTube etc.) ou das plataformas que atuam. Existe uma ubiquidade de suas presenças em diversos setores, tais como: saúde (Fitbit), transporte (Uber) e educação (Coursera). É nesta virada crítica dos estudos de internet e cibercultura que se localizam os chamados Estudos de Plataforma, que buscam uma refinada articulação entre as dimensões técnicas, políticas e econômicas que constituem as populares "redes sociais online".
Conceito de Rede
Para além de termos como "rede de computadores" ou "sociedade em rede", a metáfora da rede se destaca nos estudos em internet principalmente por ressaltar a possibilidade sociotécnica de perfis formalizarem suas interligações através de recursos como seguir, curtir e compartilhar. Se voltarmos para o início dos anos 2000, vamos lembrar que no tempo do Orkut as redes sociais eram chamadas de "sites de relacionamento" justamente porque as discussões estavam centradas em como esses artefatos mediavam – e ressignificavam – os vínculos interpessoais por meio de recursos como adicionar um amigo ou mandar um scrap.
Defendemos aqui que, na contemporaneidade, os modos de se estabelecer vínculos na web não podem ser vistos fora de uma lógica de sociabilidade programada proposta pelas plataformas. Ao discutir as lógicas sociotécnicas da conectividade induzida pelo Facebook, Taina Bucher (2013b) ressalta que essa plataforma atua não só para materializar vínculos anteriores ou sugerir novos, mas é também corresponsável pela emergência de uma nova concepção de amizade. Não se trata de atribuir aos artefatos tecnológicos o poder de controlar as práticas contemporâneas, mas sim de reconhecer que em suas lógicas materiais e econômicas, uma plataforma como o Facebook influi decisivamente no modo como compreendemos e gerimos nossas relações interpessoais, profissionais, com a vizinhança, etc.
Segundo princípios de campos como a Análise de Redes Sociais (ARS), redes são visualmente apresentadas como grafos que são inscrições que tornam visíveis como uma ou mais entidades – representadas por nós – se conectam umas às outras através de arestas (RECUERO, 2017). Ancorados na TAR e em discussões afins, Venturini, Munk, Jacomy e colegas (2018) apontam que a rede pode ser também vista como uma forma de conhecimento que, quando associada à estrutura modular das arquiteturas computacionais, se potencializa e multiplica. Conforme os autores, em ambientes como as plataformas online, "as conexões sociais se tornam mais materiais e, com isso, mais rastreáveis" (VENTURINI; MUNK; JACOMY, 2018, p. 9). Por isso, "quanto mais mediada por tecnologias, mais a vida coletiva pode ser lida por meio da teoria das redes, mensurada pela Análise de Redes e capturada em dados de rede" (VENTURINI; MUNK; JACOMY, 2018, p. 11).
Imagem usada pelo webjornal Business Insider para ilustrar a estrutura de dados do “social graph” do Facebook. As ações são convertidas em objetos passíveis de serem processados na lógica de uma rede. Disponível em: https://www.businessinsider.com/explainer-what-exactly-is-the-social-graph-2012-3.
Em outras palavras, as plataformas se apropriam das lógicas de conexão e as potencializam como parte de uma estratégia – comercial sobretudo – que visa incentivar usuários a deixar rastros de suas relações, preferências, etc. Considerando essa concepção, parece-nos que é grande o risco de, ao usarmos automaticamente o termo "rede social", enfatizarmos apenas a dimensão relacional das plataformas, inviabilizando os aspectos materiais, econômicos, políticos, etc. da conectividade online.
Na perspectiva dos Estudos de Plataforma – e dos campos teóricos que os subsidiam –, as plataformas não são meras intermediárias em que a sociedade se faz visível e a partir das quais interações sociais podem ser estudadas, mas sim ambientes que condicionam a emergência de um social. Embora assimétricas, as articulações aqui não são unidirecionais: além de constituidoras do social, o Facebook, a Uber e a Netflix são resultado das agências múltiplas e sobrepostas que abrigam.
Há situações em que as controvérsias ou incertezas são desencadeadas e/ou protagonizadas pelas plataformas. Em primeiro lugar, lembram-se os escândalos recentes envolvendo o Facebook ou a greve dos motoristas da Uber. Nesses casos, vale explorar uma ampla e cuidadosa pesquisa documental sobre as transformações de suas políticas de governança, suas mediações algorítmicas e seus modelos de negócio, entre outros aspectos. Um segundo modo é quando as plataformas atuam para moldar discussões, conversações e mobilizações vinculadas a temáticas ou acontecimentos específicos, como transmissões televisivas, declarações de autoridades ou campanhas eleitorais. Nesses casos, as plataformas não são o tema central das controvérsias, mas sim a ambiência em que os atores agem em busca de visibilidade.
Plataformas
Em um trabalho pioneiro, Tarleton Gillespie (2010) discutiu como o termo “plataforma” vinha sendo estrategicamente usado por serviços como Google e YouTube para se venderem como meros “intermediários”, isto é, como artefatos neutros que permitiriam uma circulação mais aberta e democrática de informações e serviços. Dentre os “territórios semânticos” do termo “plataforma” mencionados por Gillespie, chamamos a atenção para a dimensão infraestrutural, que remete a plataformas de trem ou metrô, e também para seu sentido político, em uma referência às (vagas) argumentações das “plataformas de governo” divulgadas nas campanhas eleitorais.
Ao desconstruir a estratégia discursiva das empresas, Gillespie (2010) contribuiu decisivamente para a constituição de um olhar analítico que considera o entrelaçamento entre os interesses comerciais, as escolhas computacionais e os posicionamentos políticos das plataformas. Um desdobramento importante dessa discussão trata da resistência das “empresas de tecnologia” em serem reguladas como “empresas de mídia” (NAPOLI; CAPLAN, 2018).
Ao falar sobre as lógicas das mídias sociais, Van Dijck e Poell (2013) apontaram quatro especificidades:
Programabilidade – materializada através de códigos, APIs, algoritmos;
Popularidade – baseada em rankings, por exemplo, e movida por uma “economia de likes”;
Conectividade – que permite a personalização;
Datificação – que subsidiaria, entre outras, a ideia de “tempo real”.
Em livro publicado cinco anos depois, Van Dijck, Poell e De Wall (2018, p. 4) afirmam que “uma plataforma online é uma arquitetura projetada para organizar interações entre usuários – não apenas usuários finais, mas também entidades corporativas e órgãos públicos”. De modo ainda mais didático, Van Dijck, Poell e Wall (2018, p. 9, grifo do autor) evidenciam os entrelaçamentos entre as dimensões materiais, culturais e econômicas das plataformas ao afirmarem que “uma plataforma é alimentada com dados, automatizada e organizada por meio de algoritmos e interfaces, formalizada por meio de relações de propriedade orientadas por modelos de negócios e regidas por acordos de usuários”.
A centralidade das questões apontadas pelos Estudos de Plataforma para a compreensão de diferentes dinâmicas contemporâneas se evidencia ainda em dois desdobramentos conceituais fundamentais para a agenda de pesquisa apresentada por este livro: a noção de “plataformização” e a emergência da “Sociedade da Plataforma”.
O crescente intercâmbio de dados mediados pelas plataformas e a capilaridade dos modelos de negócios desenvolvidos por essas empresas têm como uma de suas consequências o que a pesquisadora Anne Helmond (2015) chama de “plataformização da web”. Mais do que parceiros ou geradores de tráfego, plataformas infraestruturais como Google e Facebook têm se afirmado como modelos de funcionamento computacional com base nos quais outros serviços da chamada open web passam cada vez mais a operar. Para funcionar (em termos técnicos) e sobreviver (em termos econômicos), blogs, sites pessoais, portais etc. são levados a se adequar aos protocolos de acesso e intercâmbio de dados adotados pelas plataformas online.
Gerlitz e Helmond (2013) citam o hoje onipresente botão “curtir” lançado pelo Facebook em 2010 como um exemplo marcante desse processo. Através de “social plugins”, websites passaram a se conectar ao Facebook, permitindo o intercâmbio e a comercialização de dados. Inúmeras outras plataformas incorporaram o “like” desde então, o que instituiu um modelo de trocas – ou seja, uma economia – baseado na conectividade e nos esforços de mensuração através de métricas como popularidade e engajamento. Por outro lado, o Instagram – que pertence ao Facebook – anunciou, no início de 2019, que a soma de curtidas em uma postagem não seria mais exibida para os seguidores de um perfil, o que exemplifica os constantes processos de ajustes e reposicionamento que caracterizam a atuação das plataformas online.
Plataformização
Para d’Andréa (2020), Academia.edu, Airbnb, Baidu, Coursera, Duolingo, Deliveroo, Facebook, Grindr, Instagram, Itch.io, LinkedIn, Uber e WhatsApp. Organizados em uma interrompida ordem alfabética, esses serviços online listados são bastante diferentes entre si e seguem sendo opacos – não existe transparência quanto ao seu modo de operar, abertura de código e sua capilaridade, tal como caixas-pretas (Vilém Flusser 2018 e 2020). Algumas características, no entanto, os aproximam, entre as quais o funcionamento baseado na produção e no intercâmbio de dados, as lógicas comerciais ancoradas no engajamento dos usuários e os esforços para regular quais práticas são ou não permitidas. Esses e os demais serviços que aqui serão denominados “plataformas online” atuam fortemente para reorganizar as relações interpessoais, o consumo de bens culturais, as discussões políticas, as práticas urbanas, entre outros setores da sociedade contemporânea. Ou, como propõem Van Dijck, Poell e de Wall (2018), da “sociedade da plataforma”. Aqui, como premissa, observa-se que artefatos tecnológicos e práticas sociais se coproduzem. Assim, devemos voltar nossa atenção para os modos como, em meio a um complexo e assimétrico jogo de poder, os usuários e as materialidades se constituem mutuamente. Em outras palavras, devemos procurar entender tanto o modo como algoritmos, recursos tecnogramaticais – curtir, compartilhar etc. –, políticas de governança – como os termos de uso – etc. moldam as práticas e as percepções dos usuários, quanto as apropriações criativas, táticas e coletivas que recriam, cotidianamente, as plataformas.
Um aspecto que consolida e singulariza a ideia de “plataforma online” é a crescente adoção de uma arquitetura computacional baseada na conectividade e no intercâmbio de dados. Baseadas em robustas infraestruturas – em geral nomeadas como servidores “na nuvem” –, as plataformas se consolidam a partir de um modelo centralizado de fluxos informacionais e financeiros. Por outro lado, a interoperabilidade entre as plataformas faz emergir um “ecossistema” de plataformas (VAN DIJCK, 2013) que se articula de modo distribuído. Centralizar e, ao mesmo tempo, descentralizar é apenas um dos “paradoxos” que marcam a atuação das plataformas online. (VAN DIJCK; POELL; DE WALL, 2018, p. 13)
Dimensões das plataformas online
É importante situar a emergência dos Estudos de Plataforma e sua relação com a crise da sedutora retórica da colaboração sobre a qual a chamada Web 2.0 se constituiu. A grande concentração de serviços e dinheiro em cinco empresas – Alphabet-Google, Amazon, Apple, Facebook e Microsoft – e os escândalos protagonizados por essas e outras plataformas são fatores decisivos para uma crescente virada crítica nos estudos em internet e cibercultura. O foco agora se volta para as complexas e refinadas articulações entre modelos de negócio, infraestruturas, bases de dados, algoritmos, regras de governança e uma diversidade de usos que constituem o Twitter, o YouTube, a Uber e tantos outros serviços.
As diferenças conceituais entre os termos “redes sociais” e “plataformas” também são essenciais. Enquanto o primeiro termo enfatiza uma dimensão interacional, a perspectiva das plataformas busca ressaltar como as trocas são moldadas pelos aspectos computacionais, econômicos e políticos da conectividade online.
Utilizando como modelo de análise o material escrito por Jose Van Dijck no livro Culture of Connectivity (2013), seguem as cinco dimensões fundamentais das plataformas online:
Ao se abordar “Datificação e algoritmos”, voltamo-nos para as arquiteturas computacionais das plataformas, que se constituem por meio de lógicas próprias de captura, processamento e intercâmbio de dados via Interfaces de Programação de Aplicações (em inglês, Application Programming Interfaces, ou APIs).
A centralidade dos metadados, a busca por padrões e a adoção de modelos de aprendizagem de máquina são algumas das questões mencionadas à luz de conceitos como “plataformização da web” (HELMOND, 2015) e “dataísmo” (VAN DIJCK, 2017). De forma complementar, discutimos como as mediações algorítmicas instauram regimes de conhecimento a partir de múltiplas performatividades. Cada vez mais convocados para explicar e problematizar as plataformas, os algoritmos são aqui tomados não apenas como rotinas de programação que processam dados, mas principalmente como instâncias que viabilizam “uma leitura interessada de uma realidade empírica e ‘datificada’” (RIEDER, 2018, p. 127).
Ao se abordar o tópico “Infraestrutura”, atentamos para a crescente atenção dedicada, pelos estudos em internet, às bases políticas e materiais sobre as quais se organiza a “sociedade da plataforma”. Servidores que oferecem serviços na “nuvem”, sistemas operacionais, navegadores de internet e cabos submarinos são parte fundamental dos negócios das Big Five, que, não por acaso, são hoje denominadas “plataformas infraestruturais”. As infraestruturas são pensadas ainda como constituidoras de processos de mobilidade, de cidadania e de trocas afetivas.
Os conceitos e definições atrelados a “modelos de negócio” partem do pressuposto de que as plataformas são protagonistas do regime capitalista contemporâneo. Apontamos de que maneira sua atuação reorganiza o funcionamento de vários mercados, como do jornalismo, da música e do transporte. Outro aspecto fundamental é como a datificação remodela os processos de compra e venda de espaços publicitários, consolidando modelos como o da mídia programática.
Em "Governança", apontamos como as plataformas propõem e negociam seus modos de funcionamento visando lidar com questões diversas, como discursos de ódio, imagens de nudez ou circulação de fake news. Um extenso conjunto de regras, procedimentos, algoritmos e moderadores humanos é mobilizado para gerir e regular a "livre" circulação de ideias. A discussão em torno da governança do WhatsApp durante as eleições gerais de 2018 é um dos casos mencionados.
As lógicas e os constrangimentos mediados pelas plataformas moldam uma economia de mercado baseada em movimentações financeiras transnacionais de forte caráter especulativo, o que acirra desigualdades e assimetrias em âmbitos locais e globais. Essas e outras especificidades da atuação econômica das plataformas são detalhadas em pesquisas recentes sobre “capitalismo de plataforma” (SRNICEK, 2016), “colonialismo de dados” (COULDRY; MEJIAS, 2019) e “trabalho plataformizado” (VAN DOORN, 2017).
Uma das facetas mais evidentes da dimensão comercial das plataformas é o crescente estímulo ao pagamento de assinaturas que dão acesso a conteúdos exclusivos, sem interrupções de anúncios e com funcionalidades extras. No auge da Web 2.0, propagou-se a ideia de que os serviços online seriam fundamentalmente gratuitos. Hoje, a adoção das plataformas como padrão para práticas diversas como ouvir música e podcasts (Spotify), armazenar arquivos (Dropbox) ou ler artigos jornalísticos ou de opinião (Medium) leva cada vez mais pessoas a pagar alguns dólares mensais para ter acesso pleno a serviços. Essa tendência é ainda mais efetiva na indústria audiovisual e resultou, no caso do YouTube, na adesão ao modelo de assinaturas. Entretanto, para compreendermos como as lógicas econômicas das plataformas funcionam, precisamos voltar a falar em sua intrínseca relação com o armazenamento, processamento e intercâmbio dos dados fornecidos, de forma voluntária ou não, por seus diferentes tipos de usuário. Nas palavras de Bernhard Rieder (2018, p. 138), a “Google pode ser uma empresa de publicidade em primeiro lugar, mas em segundo lugar é empresa de estatística”, o que ressalta a indissociabilidade entre as estratégias comerciais e a datificação como forma hegemônica de conhecimento. Desde 2018, esse é o caso do Instagram, que justifica as restrições com o argumento de preservar a “privacidade e segurança” de seus usuários. No caso do Twitter, as restrições na pioneira API aberta a terceiros (2006) sinalizaram uma mudança no modelo de negócios da plataforma, que passou a se considerar uma “empresa de informação” (VAN DIJCK, 2013).
Nas plataformas, informações demográficas – idade e localização –, de hábitos e preferências – lugares frequentados, artistas preferidos – e de uso das próprias plataformas – com que frequência se está online, por exemplo – são cruzadas com o intuito de traçar perfis segmentados ou de prever comportamentos. A promessa é atender a “qualquer” demanda informacional de um parceiro comercial. É importante atentarmos para o modo como as plataformas, mais do que revelar, constituem novos públicos a partir dos dados que priorizam e das preferências do mercado.
A ferramenta “Audience Insights” do Facebook é um bom exemplo dessa dinâmica. Mediante login com a conta de um perfil ou de uma página, é possível fazer várias simulações visando à “criação de públicos” específicos em função de “interesses” – como “alimentos” – ou atividades recentes – como estar “longe da família” ou em um “relacionamento à distância”. O processamento algorítmico dos dados permite a delimitação de “públicos calculados” (GILLESPIE, 2018a) para os quais são criados e direcionados novos anúncios no Facebook.
Com frequência, esses mecanismos de segmentação dão margem para o direcionamento de anúncios com viés claramente racista ou xenófobo. Em 2017, uma reportagem do site ProPublica revelou que o Facebook oferecia, como possibilidade de segmentação de público, categorias antissemitas como "Jew Hater" e "How to burn Jews" ("odiador de judeus" e "como queimar judeus", em uma tradução livre para o português) (ANGWIN; VARNER; TOBIN, 2017). Já o BuzzFeed descobriu que o Google permitia a associação de anúncios a expressões racistas como "black people ruin neighborhoods" ("negros arruínam vizinhanças", em uma tradução livre) (KANTROWITZ, 2017). Após as denúncias, as plataformas afirmaram que ajustes foram feitos em seus sistemas.
De forma complementar ao uso comercial da datificação e dos processos algorítmicos, devemos entender o sucesso econômico das plataformas a partir de como elas articulam diferentes mercados e serviços que anteriormente funcionavam de modo mais fragmentado. Em diálogo com estudos organizacionais e de finanças, Poell e Nieborg (2018) apontam para a consolidação de "plataformas multilaterais", isto é, de serviços online que baseiam seus modelos de negócio na articulação com outros serviços e mercados.
Isso ocorre com as instituições jornalísticas, que dependem das plataformas infraestruturais para fazer circular e remunerar suas produções, e também com os diferentes setores do entretenimento – games, músicas, produções audiovisuais –, ou ainda instituições ligadas à mobilidade e à ocupação do espaço urbano (Uber e Airbnb). Outro exemplo é o do LinkedIn: grande parte do sucesso dessa plataforma está na sua capacidade de articular relações entre trabalhadores e empresas.
A automatização dos processos de compra e venda de espaços publicitários é um bom exemplo de como as plataformas se posicionam de forma multilateral. A consolidação da "mídia programática" (SILVEIRA; MORISSO, 2018) dá às plataformas infraestruturais uma posição privilegiada entre os atores do segmento. Na publicidade online, o crescimento exponencial de anunciantes e publishers – como blogs e portais – levou à formação de um complexo ecossistema de serviços que visa integrar a compra e venda descentralizada de anúncios. Empresas como o Google não só oferecem serviços complementares para anunciantes (AdWords) e para produtores de conteúdo (AdSense), mas também reorganizam relações através de uma ferramenta que unifica diferentes serviços de publicidade online (DoubleClick Ad Exchange).
Não é apenas com base nos dados obtidos pelas plataformas que perfis de usuários são traçados e campanhas são planejadas. Uma base de dados com informações pessoais – sobretudo telefone e CPF – de clientes atuais de uma empresa pode ser enviada para uma plataforma como o Facebook, que a cruzará com os perfis dos usuários cadastrados e recomendará novos públicos potenciais.
São também as plataformas que operacionalizam a exibição dos anúncios e fornecem os dados para medir sua eficácia. Essa relação se dá a partir de leilões em "tempo real", isto é, ganha mais visibilidade quem pagar mais, o que acirra uma competitividade baseada nas opacidades algorítmicas e, potencialmente, em processos especulativos. Também funciona como "mídia programática" o modelo da "publicidade nativa", que consiste na exibição de conteúdos de terceiros junto ao conteúdo dos publishers contratantes. O serviço "Taboola" é um dos mais populares no Brasil e no exterior.
Outro exemplo interessante de reorganização de mercados é o modo como o YouTube lida com a remuneração por direitos autorais. A simples proibição de circulação de vídeos protegidos por copyright não é o único modo de a plataforma lidar com a questão. Através do software Content ID, gravadoras, editoras e outras instituições são incentivadas a cadastrar suas músicas, filmes e outros produtos. Essa base de dados hospedada pelo YouTube permite que vídeos com conteúdos proprietários sejam rapidamente identificados. Em vez de pedirem a exclusão do vídeo, os gestores podem optar por serem remunerados ou por terem acesso aos dados do vídeo postado por terceiros (MARCHI, 2018).
Novo paradigma de "desenvolvimento"
Em suma, a plataformização é um processo semelhante à industrialização ou eletrificação, referindo-se a uma transformação multifacetada das sociedades globalizadas (Poell et al., 2019). A ascensão de ecossistemas de plataformas corporativas e controladas pelo Estado derrubou o ideal outrora popular de uma Internet universal e neutra que liga o mundo. Até certo ponto, também minou as distinções clássicas entre Estado, mercado e sociedade civil – conceitos que ainda são vitais na demarcação de acordos governamentais. Os sistemas globais de informação dominados por aparatos tecno-corporativos substituem agora os poderes econômicos das nações; sua influência ultrapassa indiscutivelmente a influência política dos governos e administrações eleitos quando se trata de regular as democracias e a vida cívica (MOORE, 2018). Embora as plataformas tecnológicas controlem cada vez mais as portas de acesso a todo o tráfego da Internet, à circulação de dados e à distribuição de conteúdos – tornando sociedades inteiras dependentes dos seus sistemas – conseguiram esquivar-se ao escrutínio regulamentar convencional (GiLLESPIE, 2018). Os quadros regulamentares nacionais e supranacionais (ou seja, a União Europeia (UE)) normalmente examinam um aspecto da governança, como a concentração do mercado, a liberdade de informação ou os direitos de privacidade, mesmo quando a plataformização atravessa quadros jurídicos e continentes.
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